terça-feira, 17 de novembro de 2009

Go Ask Ogre: Letters from a Deathrock Cutter

Por Humberto Luminati

O que você faria se vivesse nos anos 80, enfrentasse uma terrível depressão e gostasse de musica gótica? Se você pensou em escrever milhares de cartas para o vocalista de sua banda favorita, acertou.

O livro “Go ask ogre: letters from a deathrock cutter” trata exatamente disso, uma visão de uma adolescente gótica nos anos 80. A adolescente em questão chama-se Jolene, tem 17 anos e o ano é 1987. Cansada de não conseguir encontrar seu lugar no mundo, a menina decide escrever cartas para Ogre, líder da banda Skinny Puppy e seu ídolo. O habito torna-se uma pequena obsessão, e ela passa a escrever quase que diariamente. O vocalista acaba tornando-se uma espécie de confidente invisível.

No decorrer das cartas, acabamos conhecendo uma menina sensível e depressiva, que também é uma cutter - pessoa que se auto-flagela por motivos diversos. As mudanças e acontecimentos da época muitas vezes fazem parte das emoções sentidas por ela ou simplesmente citados, como o medo da aids, a morte de Andy Warhol e Salvador Dali, bem como a cultura pop, álbuns do Christian Death, Bauhaus, Sisters of Mercy, e filmes de Roman Polanski e outros diretores. As cartas, que mesmo sem essa intenção na época que foram escritas, acabaram por formar um grande panorama do final dos anos 80, principalmente de pessoas que se identificavam com a musica e o estilo gótico.

Essas cartas acompanham a narradora por cerca de três anos, passando do final do ensino médio à faculdade, escritas sempre de forma simples. Algumas vezes, frases quase que desconectas formam um bela visão juntas. Os assuntos são desde o péssimo relacionamento com a mãe, empregos e as drogas - uma carta sobre efeito de ácido está muito interessante. Em todas as cartas uma arte impecável era feita nos envelopes - a arte é reproduzida no livro.

Mais interessante ainda é o fato de Ogre ter guardado todas as cartas e devolvido a autora uma década depois - o que originou o livro.

Hoje Joane é formada em artes, fotografia e design gráfico, além de amiga pessoal de Ogre.

O livro não foi lançado no Brasil, mas é fácil de ser comprado online em lojas como a Amazon, que entrega no Brasil.

Titulo: Go Ask Ogre: Letters from a Deathrock Cutter
Autor: Siana, Jolene
Editora: Process (USA)



quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Cinetose no Festival Contemporâneo de Dança




O Grupo Cinetose (Mal do Movimento) apresenta Esperas no "Teorema Demosntrativo" do Festival Contemporâneo de Dança.


15 de Novembro às 16h na Galeria Olido

Avenida São João, 473 - Centro/SP

Entrada Franca


Esperas

Por Flávio Fraschetti


I
(O encontro)

O que restava de meu rosto
era coberto, pelos panos,
pelas cerimônias amarradas.

Em campos de espelhos,
espero sempre essa chuva
esquecer dos meus olhos.

Assim fazíamos a rotina:
o dia pelas passagens,
a caça pela sede.

Ao longe, um canto certeiro
cercado de luz, a esfera finita
brotando dos olhos ávidos.

E amarro, de nó em nó,
a pele, os dedos, o dia,
os dentes cravados na terra.

Sementes de um azul tão próximo.
Retalha, retalha e amarra
as pernas, os pelos, a pele.

O pano, colado, funde
a chuva emaranhando
a terra sobre os olhos.

Esperando a colheita.
Esperando o passado.
Intactos sob a pele.



II
(A passagem)


Permanecíamos no rastro,
a lama transbordando
sobre a pele trêmula.

Uma luz branca acorda
os olhos vidrados no ato:
dança dos dias mortos.

Faíscas tentam acender o sangue.
Lençóis pelas ruas anunciam
um novo nascer de nuvens
nos trazendo sua loucura,
devorando as fardas
e as chamas do erro.

Recolho as fraturas do tempo:
Encontros engessados
pela sutileza do medo.



III
(O Repouso)


Circula, circula imóvel.
Cava em tuas passagens,
um jamais ultrapassar.

Distante, torna-se
translúcida
grande chegada.

Tateia, tateia a fuga.
Desprende-se da pele,
craveja de pétalas
a carne exposta.

Repousa, destemido e
flutuante em sua glória.
Ao presente inalcançável:
oferendas da pele.


(Era latente o caminho entre as covas.
De si esperava apenas a imagem.
Distante e consumada, a enterrariam.
banhada de luz, tornar-se-ia seiva.)



IV
(O tempo)


É hora de devorar os vendavais.
No peito, o arrancar de raízes
toma em mãos a seiva
que derrete o aço das veias.

Com o sabor da chuva na boca
aperto as centelhas do silêncio.
Com um suspiro nos olhos,
as trilhas conduzem ao deserto.

Ao final, sustento os vultos
do fazer brilhar:
céu entre folhas secas.
Rostos dissipados no espelho.

Assim amávamos os trilhos:
Festejando o luar,
esperando o momento
de contorcer o tempo
e o relógio dos olhos.

Estraçalhados,
flutuamos nesta correnteza.
Pela delicadeza deste ruído
envoltos em bruma perene.



V
(A batalha)

Oferecido os retratos, impunha suas formas aos poros e extraia
das passagens o dissipar necessário para reavivar os nervos e partilhar sua teia com os cantos esquecidos na guerra.
---
Era uma manhã de janeiro em qualquer dia daqueles que passa, e eu via
farrapos ajoelhados e pedindo perdão, sacudindo os braços em busca de
afago. Via os servos e plenos carrascos entre o som da trombeta e o
grito da espada, e dizia "cubram seus ossos, pois o sagrado vazio
agora é preenchido por traças", e eu trazia em meus braços um
leito e uma vidraça para cercar seus rostos. Você tinha somente olhos
para me olhar com solidez em ferro e brasa em pálpebras latejantes, e eu
tinha somente a garganta vazia e o ódio nos pulmões ao contemplar o
sacrifício dos farrapos que juravam e proclamavam a própria liberdade,
que juravam e proclamavam perante a espada e que não tinham senão o grito,
e eu não tinha senão dois olhos e uma vidraça enquanto o grito calava
na boca do som e eu não era quando lhe dizia, mas podia afirmar, eu não
era o que agora eu sou e eu sou o sono dos mendigos na praça e o solo imundo
que aconchega os pés dos meninos de rua e uma solidão nua que
atormenta e escava os ossos sem nunca cessar,
esperando o vento e seu último suspiro, entrincheirado sob as lamparinas
na ausência do mundo.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Sobre como talhar um novo diafragma para si

Por Flávio Fraschetti

Em dias fragmentados, abandonados ao ócio de um relógio contorcendo os segundos no pulso de um passante, esquina próxima, instante tardio onde fileiras humanas prosseguem seu curso vicioso com pernas tortas movidas pelo estalo automático da máquina cerebral. O sol permanece intacto e cinza nos dentes gastos imaculados de uma freira cabisbaixa e orgulhosa atravessando um esgoto, passando desapercebida por alguma criança de sonhos mudos, aguardando a próxima morada. Retratos, espelhos, fardas, múmias dispersas, códigos imaculados, identidades, senhas e estátuas: discípulos da verdade renovadora de todos os ciclos detentores da ordem.

É de molduras a paisagem deste quadro, é de canto repetido o solfejo destas mãos. Um burocrata e um pastor são instalados em cada traço, zelam pela obediência de nossos dias e remetem aos corpos o ciclo do bem-pensar e das planilhas bem formuladas em cada gesto e pensamento, reproduzindo seus ditames da consciência entre os encaixes dos tijolos, para a formação dos muros que suspendem nossas telas.

A paz encontra-se mortalmente instalada em cada desejo sepultado pela constante funcionalidade dos poderes, ávidos em imobilizar espontaneidades.

De calma e paciência, a sala de espera do mundo cumpre sua função. Nos sindicatos & partidos, como nas movimentações por políticas públicas, uma legião de seguidores munidos com seus sacerdotes se dilaceram pela forma adequada de soberania e pelos futuros mandatos, a moderação das leis e a inclusão de possíveis discordâncias para que sejam aperfeiçoados os maiores desejos dessas almas vitimadas: um futuro promissor por meio de governos que possibilitem prever o imprevisível.

Tintas, telas e pincéis. A precisão do pulso é capaz de expandir a pintura para além destas molduras que cercam nossas telas? Sem abstrações ou transcendências, o que se coloca é a urgência em não se deixar reduzir à institucionalização da vida.

Coexistir com tais termos requer interpor-se em lacunas de um susto capaz de brotar em cada pensamento, o qual é capaz de fazer fugir toda ordenação sensível, ou melhor, fazer fugir um sistema como se explode uma tubulação [i]; dos códigos e leis civilizadamente instaladas nos corpos e na linguagem, a estruturação da personificação documentada para a edificação de rumos e prosas cintilantes; raízes e tradições, cercadas e veladas por escudos, brasões e arames farpados.

Romper com tais tradições e estratégias de poder envolve uma batalha que se move na sensibilidade, no qual a linguagem se torna a principal arma para se obter aquilo que se busca. Este foi o principal modo de ação de muitos dos artistas que se lançaram em tal atividade tendo como objetivo a experimentação imediata de outras vivências que não as fornecidas pelos modos de existência comumente vistos na sociedade. Ao invés de objetivar a posse do poder, o desejo se faz pela criação imediata de vacúolos na realidade capaz de proporcionar as intensidades de uma experiência de pico, desprovidas das relações de poder.

Cada pulso possibilita o estilhaçar das contenções, o sangue não segue mais por apenas um sentido e ultrapassa as dimensões do vertical-horizontal em um fundo branco e raso. Tal experiência exige a contaminação do diafragma por encontros e vizinhanças de uma estranheza capaz de sacudir as células. Novos modos de respirar, capaz de modificar um corpo, até que este se torne irreconhecível para os aparelhos de captura do Estado e das filosofias militaristas.

Esparramar as entranhas ao vento, dispersar a própria história, incendiar o teatro do inconsciente freudiano e dilapidar novos signos, mais interessantes para si. Outras sexualidades e ornamentos em dedos laminados para além do corpo sedentário de juízes e diplomatas. Substituir o sedentarismo pelo nomadismo no campo de atuação que melhor componha o teor único de cada subjetividade. É preciso arrastar as molduras para além das dimensões dos muros que sustentam uma tela (sugerimos aqui alianças com o inesperado), fazer fugir a paisagem e arruinar a própria linguagem, para que seja possível tornar-se estrangeiro em seu próprio território físico-sensível. Um estado de indiferenciação incapaz de distinguir-se entre um homem ou uma mulher, animal ou planta: artigo indefinido impossibilitado de dizer Eu. [ii]

Tal caminho sem trilha segue o nômade (artista), e traça territórios sem nunca ocupá-los. Apaga sua marca e torna a fazer novos planos, arrasta as fronteiras e parte novamente pelo tocar de outros hemisférios; retorna, abriga-se, reordena-se novamente à antiga forma.

Não é outro, senão este, o papel da arte. Não de qualquer arte, mas de uma que não esteja fixada em seu solo de segurança, distribuindo identidades pelas massas e disseminando enraizamentos de uma mesmice estagnada. Trata-se, antes, de uma arte que seja capaz de embaralhar os códigos (leis e instituições) e talhar para si uma lima capaz de lenta e pacientemente romper com os muros de ferro para possibilitar esta outra experiência que fora aqui tratada, uma reinvenção sensível (que é a face filosófica de uma subversão corporal) alheia à formação de um juízo [iii].

Únicos em seu desencaminhamento, alguns nomes ainda ecoam em um encadeamento de incômodos múltiplos pelos diversos campos da arte. São nomes como Artaud, Rimbaud e Lautréamont; os beats, Blake, os surrealistas e dadaístas. No Brasil temos nomes como Hilda Hilst, Caio Fernando Abreu, assim como a geração de poetas paulistanos da década de 1960, na qual integravam Willer, Bicelli e o insurgente Roberto Piva.

Há de se dizer, ainda, que os caminhos e os modos para arrastar as telas de nosso tempo e dispersar as fronteiras, talvez não sejam mais os mesmos que tais autores criaram para si. Qual seria a lima adequada? Porque a simples admiração pelas experiências singulares destes poetas não é suficiente para interpor-se entre aquilo em que se acredita e aquilo que se é capaz de realizar. Do mesmo modo, a prudência necessária para que tudo não desabe na simples aniquilação de si é de outro teor mais ou menos expansivo de acordo com cada corpo que se arrisque no desembaraçar de nossas teias, na construção de novas alianças, capazes de potencializar a vida e produzir desregramentos das mais diversas formas, para que a experimentação artística seja capaz de inventar outros povos, uma outra ressonância.

A literatura atinge esse ponto produzindo por meio da sintaxe o conjunto de desvios [iv] necessários para se revelar a vida nas coisas, não como um processo de imitação, identificação, mas justamente como uma zona de vizinhança que comporta dentro de si agenciamentos coletivos de enunciação. De tal modo, não se escreve com as próprias lembranças ou neuroses. A literatura segue a linha inversa à da individuação promovendo as potências de um impessoal não como generalidade, mas de uma enorme singularidade, cuja função consiste em fabular e falar por um povo que falta. Tal caráter coletivo desses agenciamentos também se faz presente em composições de outras espécies (música, cinema, performance...), indicando a passagem pela qual a potência de invenção na linguagem se transforma em potência política.

Trata-se de fazer passar outros sopros lá onde os burocratas exercem seu controle pleno: atividade reprodutora, calmaria mortificante dos lares bem administrados, filhos dóceis, estamentos e estatutos; os partidos da esquerda, da direita, do centro, do céu e do inferno. Trata-se de fazer passar justamente ali algo que era totalmente esquecido: o povoamento por intensidades, fazendo com que somente as intensidades passem...

...“...Estendi cordas de campanário a campanário; grinaldas de janela a janela; correntes douradas de estrela a estrela, e danço.”
Rimbaud


i. A formulação é de Gilles Deleuze.
ii. Ver Deleuze, Gilles. Crítica e clínica (Trad.: Peter Pàl Pelbart). São Paulo: Editora 34, 1997.
iii. Por juízo compreende-se o impedimento da apreensão do novo em cada existência e ponto predominante para a formação de subjetividades assujeitadas ao modelo estatal.
iv. Tais desvios são de todas as espécies: moleculares, animais, femininos...