sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Sobre como talhar um novo diafragma para si

Por Flávio Fraschetti

Em dias fragmentados, abandonados ao ócio de um relógio contorcendo os segundos no pulso de um passante, esquina próxima, instante tardio onde fileiras humanas prosseguem seu curso vicioso com pernas tortas movidas pelo estalo automático da máquina cerebral. O sol permanece intacto e cinza nos dentes gastos imaculados de uma freira cabisbaixa e orgulhosa atravessando um esgoto, passando desapercebida por alguma criança de sonhos mudos, aguardando a próxima morada. Retratos, espelhos, fardas, múmias dispersas, códigos imaculados, identidades, senhas e estátuas: discípulos da verdade renovadora de todos os ciclos detentores da ordem.

É de molduras a paisagem deste quadro, é de canto repetido o solfejo destas mãos. Um burocrata e um pastor são instalados em cada traço, zelam pela obediência de nossos dias e remetem aos corpos o ciclo do bem-pensar e das planilhas bem formuladas em cada gesto e pensamento, reproduzindo seus ditames da consciência entre os encaixes dos tijolos, para a formação dos muros que suspendem nossas telas.

A paz encontra-se mortalmente instalada em cada desejo sepultado pela constante funcionalidade dos poderes, ávidos em imobilizar espontaneidades.

De calma e paciência, a sala de espera do mundo cumpre sua função. Nos sindicatos & partidos, como nas movimentações por políticas públicas, uma legião de seguidores munidos com seus sacerdotes se dilaceram pela forma adequada de soberania e pelos futuros mandatos, a moderação das leis e a inclusão de possíveis discordâncias para que sejam aperfeiçoados os maiores desejos dessas almas vitimadas: um futuro promissor por meio de governos que possibilitem prever o imprevisível.

Tintas, telas e pincéis. A precisão do pulso é capaz de expandir a pintura para além destas molduras que cercam nossas telas? Sem abstrações ou transcendências, o que se coloca é a urgência em não se deixar reduzir à institucionalização da vida.

Coexistir com tais termos requer interpor-se em lacunas de um susto capaz de brotar em cada pensamento, o qual é capaz de fazer fugir toda ordenação sensível, ou melhor, fazer fugir um sistema como se explode uma tubulação [i]; dos códigos e leis civilizadamente instaladas nos corpos e na linguagem, a estruturação da personificação documentada para a edificação de rumos e prosas cintilantes; raízes e tradições, cercadas e veladas por escudos, brasões e arames farpados.

Romper com tais tradições e estratégias de poder envolve uma batalha que se move na sensibilidade, no qual a linguagem se torna a principal arma para se obter aquilo que se busca. Este foi o principal modo de ação de muitos dos artistas que se lançaram em tal atividade tendo como objetivo a experimentação imediata de outras vivências que não as fornecidas pelos modos de existência comumente vistos na sociedade. Ao invés de objetivar a posse do poder, o desejo se faz pela criação imediata de vacúolos na realidade capaz de proporcionar as intensidades de uma experiência de pico, desprovidas das relações de poder.

Cada pulso possibilita o estilhaçar das contenções, o sangue não segue mais por apenas um sentido e ultrapassa as dimensões do vertical-horizontal em um fundo branco e raso. Tal experiência exige a contaminação do diafragma por encontros e vizinhanças de uma estranheza capaz de sacudir as células. Novos modos de respirar, capaz de modificar um corpo, até que este se torne irreconhecível para os aparelhos de captura do Estado e das filosofias militaristas.

Esparramar as entranhas ao vento, dispersar a própria história, incendiar o teatro do inconsciente freudiano e dilapidar novos signos, mais interessantes para si. Outras sexualidades e ornamentos em dedos laminados para além do corpo sedentário de juízes e diplomatas. Substituir o sedentarismo pelo nomadismo no campo de atuação que melhor componha o teor único de cada subjetividade. É preciso arrastar as molduras para além das dimensões dos muros que sustentam uma tela (sugerimos aqui alianças com o inesperado), fazer fugir a paisagem e arruinar a própria linguagem, para que seja possível tornar-se estrangeiro em seu próprio território físico-sensível. Um estado de indiferenciação incapaz de distinguir-se entre um homem ou uma mulher, animal ou planta: artigo indefinido impossibilitado de dizer Eu. [ii]

Tal caminho sem trilha segue o nômade (artista), e traça territórios sem nunca ocupá-los. Apaga sua marca e torna a fazer novos planos, arrasta as fronteiras e parte novamente pelo tocar de outros hemisférios; retorna, abriga-se, reordena-se novamente à antiga forma.

Não é outro, senão este, o papel da arte. Não de qualquer arte, mas de uma que não esteja fixada em seu solo de segurança, distribuindo identidades pelas massas e disseminando enraizamentos de uma mesmice estagnada. Trata-se, antes, de uma arte que seja capaz de embaralhar os códigos (leis e instituições) e talhar para si uma lima capaz de lenta e pacientemente romper com os muros de ferro para possibilitar esta outra experiência que fora aqui tratada, uma reinvenção sensível (que é a face filosófica de uma subversão corporal) alheia à formação de um juízo [iii].

Únicos em seu desencaminhamento, alguns nomes ainda ecoam em um encadeamento de incômodos múltiplos pelos diversos campos da arte. São nomes como Artaud, Rimbaud e Lautréamont; os beats, Blake, os surrealistas e dadaístas. No Brasil temos nomes como Hilda Hilst, Caio Fernando Abreu, assim como a geração de poetas paulistanos da década de 1960, na qual integravam Willer, Bicelli e o insurgente Roberto Piva.

Há de se dizer, ainda, que os caminhos e os modos para arrastar as telas de nosso tempo e dispersar as fronteiras, talvez não sejam mais os mesmos que tais autores criaram para si. Qual seria a lima adequada? Porque a simples admiração pelas experiências singulares destes poetas não é suficiente para interpor-se entre aquilo em que se acredita e aquilo que se é capaz de realizar. Do mesmo modo, a prudência necessária para que tudo não desabe na simples aniquilação de si é de outro teor mais ou menos expansivo de acordo com cada corpo que se arrisque no desembaraçar de nossas teias, na construção de novas alianças, capazes de potencializar a vida e produzir desregramentos das mais diversas formas, para que a experimentação artística seja capaz de inventar outros povos, uma outra ressonância.

A literatura atinge esse ponto produzindo por meio da sintaxe o conjunto de desvios [iv] necessários para se revelar a vida nas coisas, não como um processo de imitação, identificação, mas justamente como uma zona de vizinhança que comporta dentro de si agenciamentos coletivos de enunciação. De tal modo, não se escreve com as próprias lembranças ou neuroses. A literatura segue a linha inversa à da individuação promovendo as potências de um impessoal não como generalidade, mas de uma enorme singularidade, cuja função consiste em fabular e falar por um povo que falta. Tal caráter coletivo desses agenciamentos também se faz presente em composições de outras espécies (música, cinema, performance...), indicando a passagem pela qual a potência de invenção na linguagem se transforma em potência política.

Trata-se de fazer passar outros sopros lá onde os burocratas exercem seu controle pleno: atividade reprodutora, calmaria mortificante dos lares bem administrados, filhos dóceis, estamentos e estatutos; os partidos da esquerda, da direita, do centro, do céu e do inferno. Trata-se de fazer passar justamente ali algo que era totalmente esquecido: o povoamento por intensidades, fazendo com que somente as intensidades passem...

...“...Estendi cordas de campanário a campanário; grinaldas de janela a janela; correntes douradas de estrela a estrela, e danço.”
Rimbaud


i. A formulação é de Gilles Deleuze.
ii. Ver Deleuze, Gilles. Crítica e clínica (Trad.: Peter Pàl Pelbart). São Paulo: Editora 34, 1997.
iii. Por juízo compreende-se o impedimento da apreensão do novo em cada existência e ponto predominante para a formação de subjetividades assujeitadas ao modelo estatal.
iv. Tais desvios são de todas as espécies: moleculares, animais, femininos...

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