quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Esperas

Por Flávio Fraschetti


I
(O encontro)

O que restava de meu rosto
era coberto, pelos panos,
pelas cerimônias amarradas.

Em campos de espelhos,
espero sempre essa chuva
esquecer dos meus olhos.

Assim fazíamos a rotina:
o dia pelas passagens,
a caça pela sede.

Ao longe, um canto certeiro
cercado de luz, a esfera finita
brotando dos olhos ávidos.

E amarro, de nó em nó,
a pele, os dedos, o dia,
os dentes cravados na terra.

Sementes de um azul tão próximo.
Retalha, retalha e amarra
as pernas, os pelos, a pele.

O pano, colado, funde
a chuva emaranhando
a terra sobre os olhos.

Esperando a colheita.
Esperando o passado.
Intactos sob a pele.



II
(A passagem)


Permanecíamos no rastro,
a lama transbordando
sobre a pele trêmula.

Uma luz branca acorda
os olhos vidrados no ato:
dança dos dias mortos.

Faíscas tentam acender o sangue.
Lençóis pelas ruas anunciam
um novo nascer de nuvens
nos trazendo sua loucura,
devorando as fardas
e as chamas do erro.

Recolho as fraturas do tempo:
Encontros engessados
pela sutileza do medo.



III
(O Repouso)


Circula, circula imóvel.
Cava em tuas passagens,
um jamais ultrapassar.

Distante, torna-se
translúcida
grande chegada.

Tateia, tateia a fuga.
Desprende-se da pele,
craveja de pétalas
a carne exposta.

Repousa, destemido e
flutuante em sua glória.
Ao presente inalcançável:
oferendas da pele.


(Era latente o caminho entre as covas.
De si esperava apenas a imagem.
Distante e consumada, a enterrariam.
banhada de luz, tornar-se-ia seiva.)



IV
(O tempo)


É hora de devorar os vendavais.
No peito, o arrancar de raízes
toma em mãos a seiva
que derrete o aço das veias.

Com o sabor da chuva na boca
aperto as centelhas do silêncio.
Com um suspiro nos olhos,
as trilhas conduzem ao deserto.

Ao final, sustento os vultos
do fazer brilhar:
céu entre folhas secas.
Rostos dissipados no espelho.

Assim amávamos os trilhos:
Festejando o luar,
esperando o momento
de contorcer o tempo
e o relógio dos olhos.

Estraçalhados,
flutuamos nesta correnteza.
Pela delicadeza deste ruído
envoltos em bruma perene.



V
(A batalha)

Oferecido os retratos, impunha suas formas aos poros e extraia
das passagens o dissipar necessário para reavivar os nervos e partilhar sua teia com os cantos esquecidos na guerra.
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Era uma manhã de janeiro em qualquer dia daqueles que passa, e eu via
farrapos ajoelhados e pedindo perdão, sacudindo os braços em busca de
afago. Via os servos e plenos carrascos entre o som da trombeta e o
grito da espada, e dizia "cubram seus ossos, pois o sagrado vazio
agora é preenchido por traças", e eu trazia em meus braços um
leito e uma vidraça para cercar seus rostos. Você tinha somente olhos
para me olhar com solidez em ferro e brasa em pálpebras latejantes, e eu
tinha somente a garganta vazia e o ódio nos pulmões ao contemplar o
sacrifício dos farrapos que juravam e proclamavam a própria liberdade,
que juravam e proclamavam perante a espada e que não tinham senão o grito,
e eu não tinha senão dois olhos e uma vidraça enquanto o grito calava
na boca do som e eu não era quando lhe dizia, mas podia afirmar, eu não
era o que agora eu sou e eu sou o sono dos mendigos na praça e o solo imundo
que aconchega os pés dos meninos de rua e uma solidão nua que
atormenta e escava os ossos sem nunca cessar,
esperando o vento e seu último suspiro, entrincheirado sob as lamparinas
na ausência do mundo.

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